segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

IPCC admitiu que padrões científicos não foram seguidos

Aconteceu de novo: uma referência fajuta foi parar num documento sobre aquecimento global e gerou uma afirmação bombástica reproduzida por toda parte. Neste caso, foi o Quarto Relatório de Avaliação (AR4) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC). A certa altura, o AR4 afirma que as geleiras do Himalaia estão retrocedendo e poderiam sumir até 2035. O governo indiano questionou o dado em novembro passado. A previsão tinha aparecido pela primeira vez, mais de uma década atrás, numa entrevista de outro cientista indiano ao jornalista britânico Fred Pearce, mas nunca chegou a ser corroborada com dados em uma publicação científica. Apesar disso, a previsão acabou chegando ao AR4. Como fonte, o relatório do IPCC cita um documento da organização não-governamental WWF. Este, por sua vez, dá como referência reportagem de Pearce na revista de divulgação New Scientist de 1999. Parece notável o paralelo com o caso brasileiro relatado aqui em 4 de março de 2007: um relatório do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Mudanças Climáticas Globais e seus Efeitos sobre a Biodiversidade, afirmou que a elevação do mar pela mudança do clima punha em risco 42 milhões de pessoas no Brasil. As fontes do número eram estranhas: Ministério da Educação e Greenpeace. Uma consulta ao documento da ONG revelou que a fonte primária era O Mar no Espaço Geográfico Brasileiro, volume do MEC e da Marinha para professores do ensino médio e fundamental. A reação dos pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que coordenaram o relatório foi exemplar. Reconheceram o erro e o corrigiram de imediato. Em novembro, quando surgiu a crítica à previsão catastrófica sobre o Himalaia, o presidente do IPCC, Rajendra Pachauri, outro indiano, reagiu com agressividade. Chamou o estudo de ciência vodu e acusou-o de não ter passado por peer review (revisão por pares, controle de qualidade por revisores especializados anônimos). Com a revelação de suas fontes, o IPCC teve de admitir em comunicado, na quarta-feira, que os padrões científicos da organização não foram seguidos. Meio que se justifica dizendo que se trata de um (só) parágrafo com estimativas mal corroboradas num documento de 938 páginas (tamanho da parte do AR4 em questão). O IPCC se encontra sob ataque, ninguém duvida, mas essa não é a melhor forma de tentar consertar uma gafe. Os céticos (negacionistas) da mudança do clima aproveitarão a munição para lançar novas investidas, sem mencionar que a predição fajuta em nada altera a conclusão geral do AR4 de que o retrocesso de geleiras ameaça o fornecimento de água para centenas de milhões de pessoas na Ásia. O modus operandi dos negacionistas é conhecido: destacam todo deslize ou dado isolado que enfraqueça a interpretação de que o clima está mudando e omitem o crescente conjunto de evidências que a apoiam. Preocupante é ver que até jornalistas -melhor, alguns colunistas conservadores- se prestam a esse jogo. Não se pejam em exibir a própria ignorância, desconhecem a diferença entre tempo e clima e estão vibrando com a onda de frio no hemisfério Norte. Todo o hemisfério Norte? Não, só partes das regiões mais habitadas. O Ártico propriamente dito está mais quente que o normal. Isso é de todo compatível com as previsões do IPCC sobre a mudança do clima. Mas quem se importa com a ciência?

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