Tal como acontecia
com muitas outras coisas na República Popular, Mao Tsé-tung deu o tom para o
que viria a seguir. "O Sul da China tem muita água e o Norte tem muito
pouco", disse o Grande Timoeiro em 1952. "Devemos tentar emprestar um
pouco de água do sul para ajudar o norte." Essa foi a inspiração para o
mais complexo projeto hidráulico na história do mundo, de US$ 62 bilhões: o
Projeto de Transferência de Água Sul-Norte, para aliviar a escassez crônica de
água dos 500 milhões de pessoas que vivem na planície norte da China. O esquema
era tão grandioso e caro que só foi lançado em 2001, em um esforço desesperado
para salvar Pequim de sua crise de água.
Os grandes rios da
China, com nascentes nas montanhas do Tibete, na maior parte fluem de oeste
para leste, enquanto o antigo sistema de canais ia do sul para o norte. O
Projeto de Transferência de Água Sul-Norte moderniza a rota do velho Grande
Canal, uma das vias mais importantes do mundo antigo, que se estendia por 1,8
mil km de Hangzhou, no sul, até os arredores de Pequim, na planície do norte,
uma distância comparável àquela entre Nova York e a Flórida.
Como a
Transferência Sul-Norte, o Grande Canal cruzava cinco grandes rios para levar
recursos do coração econômico do sul para a capital política do norte. Cerca de
100 mil trabalhadores arrastaram cerca de 11 mil barcas ao longo do canal
anualmente. "O Grande Khan fez canais muito grandes, tão largos quanto
profundos, de um rio para outro e de um lago para outro", escreveu Marco
Polo há sete séculos, "e fez a água percorrer os canais como se fossem um
grande rio; e grandes navios passam por lá carregados de grãos".
Aço
A indústria de aço
chinesa cresceu além dos maiores sonhos de Mao Tsé-tung, que esperava
ultrapassar a Grã Bretanha com as fundições de quintal durante o Grande Salto
para Frente. A oferta de aço na China multiplicou-se de apenas 13 milhões de
toneladas (MT) em 1965 para 100 MT em 1996 e 700 MT em 2011, a metade da
produção mundial. Porém, a água pode ser um fator limitante no futuro. Ao lado
de ferro e energia, água é uma das commodities mais críticas, visto que são
necessários quatro toneladas de água para a produção de uma tonelada de aço.
Assim como a Grande
Muralha, o Grande Canal evoluiu com muitas adições ao longo do tempo: seu
segmento mais antigo data do século 4 a.C. Foi preciso engenharia arrojada para
conectar rios e lagos com comportas que regulavam os níveis de água, conforme o
canal negociava diferenças de altitude ao subir das terras baixas do Delta do
Yangtze para o planalto norte. Uma estrada imperial, ladeada de árvores foi
aberta ao longo de suas margens, por onde os barcos eram arrastados por
trabalhadores e búfalos de água.
Celeiros foram
construídos em muitos lugares ao longo da rota, para que o arroz pudesse ser
armazenado com segurança se a água transbordasse ou baixasse, impedindo a
rotina de transporte. Quando o missionário jesuíta Matteo Ricci viajou para
Pequim em um barco ao longo do Grande Canal, em 1598, viu eunucos comandarem
flotilhas de barcos carregados de frutas, peixes, roupas, panos de seda, chás e
vegetais, e com as cidades ao longo do caminho obrigadas a terem um suprimento
de gelo para manter os alimentos frescos.
A modernização da
antiga rota do Grande Canal é apenas uma parte de um esquema que abraça cerca
de 2,5 mil km de canais em três percursos distintos. Duas vezes o custo da
gigantesca represa das Três Gargantas no Rio Yangtze e dez vezes mais caro que
a transposição do Rio São Francisco, no Brasil, o Projeto Sul-Norte passou por
50 anos de planejamento e debate antes da construção começar em 2002.
O projeto envolve a
ampliação e a modernização do Grande Canal, a transferência de água dos
reservatórios de Três Gargantas e Danjiangkou, e a construção de vários túneis,
canais e estações de bombeamento, entre eles um túnel de 8 km sob o Rio Amarelo
que fará as águas chegarem a Pequim. Metade do custo será gasto na limpeza das
águas do rio que, devido a resíduos urbanos e efluentes de fábricas e da
agricultura, foram inutilizadas. A metrópole de Tianjin, perto de Pequim, se
recusa a usar águas poluídas da Transferência Sul-Norte; em vez disso, investe
em caros processos de dessalinização.
Grandes obras
A Transferência de
Água Sul-Norte é um dos vários projetos gigantescos sendo realizado por
empresas estatais na China:
(1) Cerca de 26
usinas nucleares em construção, além de 15 já em funcionamento e outras 35
aprovadas;
(2) De 13 a 15
"termoelétricas à carvão" nas províncias ocidentais, geradoras de
eletricidade perto de minas de carvão para enviar centenas de bilhões de
quilowatts-horas para cidades do leste como "carvão virtual",
utilizando ultra-alta tensão de transmissão (UHV) para aliviar o
congestionamento das ferrovias e rodovias no transporte de centenas de milhões
de toneladas de carvão físico por toda a China apesar da escassez de água no
oeste chinês, que limita o desenvolvimento de carvão;
(3) Uma expansão de
seis vezes a sua rede de autoestrada, para 65 mil km desde 2000;
(4) Construção de
dois terços das atuais obras aeroportuárias ao redor do mundo;
(5) Colocação de 32
mil km de ferrovia nos últimos cinco anos, incluindo a maior rede ferroviária mundial
de alta velocidade com 9,7 mil km de trilhos colocados e outros 17 mil km em
construção.
Em termos de
capacidade de utilização, de acordo com um estudo da Morgan Stanley, "as
ferrovias da China são provavelmente as mais sobrecarregadas do mundo", incapazes
de conciliar o ritmo de crescimento econômico e levando quase quatro vezes mais
carga por quilômetro de trilho que os Estados Unidos. Devido à ineficiência,
custos com logística na China absorvem 18% do PIB, contra 8% nos Estados Unidos
e na Alemanha e 11,6% no Brasil. Grande parte da massiva carga ferroviária é
carvão levado para usinas de energia e siderúrgicas por toda a China.
Aldeias do câncer
Ao longo do Grande
Canal há uma das maiores concentrações de "vilas do câncer",
comunidades principalmente rurais em algumas das regiões mais ricas da China,
afetadas por agentes cancerígenos em resíduos industriais (despejados em rios e
canais por usinas petroquímicas e elétricas) e em pesticidas utilizados nos
campos. Desde os anos 1990, o câncer tornou-se a principal causa de morte na
China, com uma incidência a cada cinco mortes. Em comparação com a média
mundial, os agricultores chineses são cinco vezes mais propensos a morrer de
câncer de fígado e duas vezes mais propensos a morrer de câncer de estômago.
Começando em 1998,
reportagens investigativas de meios de comunicação chineses, especialmente a
CCTV e a Shibao Shenghuo (Tempos de Vida) encontraram nos arredores de Tianjin
a primeira de 459 vilas chinesas com casos de câncer e mortes. Essas descobertas
foram documentadas por outras reportagens e por pesquisas governamentais, que
identificaram um "cinturão de vilas do câncer" no leste
industrializado da China, onde 84% desses surtos ocorreram. "Acredita-se
que a contaminação da água pela poluição industrial é a principal causa de
câncer nessas aldeias", disse Lee Liu, geógrafo da Universidade Central de
Missouri, "e existe uma relação forte entre os grandes rios da China e a
localização dos municípios do câncer".
Respondendo as
múltiplas ameaças impostas pela degradação ecológica, a China lançou a campanha
de limpeza mais ambiciosa em toda a experiência humana. De acordo com seu 12º
Plano Quinquenal (2011-15), a China iria: (1) reduzir as emissões de poluentes,
especialmente metais pesados, produtos químicos perigosos e poluentes
orgânicos; (2) proteger água potável; (3) atualizar infraestrutura urbana; (4)
fechar indústrias obsoletas de produção de aço e ferro, metais não ferrosos,
materiais de construção, produtos químicos, papel, carvão e corantes. O Plano
estabelece suas metas detalhadamente.
No entanto, no
passado, esses esforços foram atrapalhados pela sobreposição de
responsabilidades entre os governos central, provincial e local para a gestão
dos recursos hídricos. A responsabilidade dos problemas com água é
compartilhada pelos ministérios dos Recursos Hídricos, da Proteção Ambiental e
do Desenvolvimento Urbano.
Esses ministérios
decretam planos e metas a serem realizados por governos provinciais e locais,
que arcam com parte do financiamento. Porém, o poder real é local. Políticas e
metas anunciadas pelo poder central podem se chocar com interesses locais.
Essas dificuldades no exercício de política hidráulica afligem vários países,
entre eles Brasil, Estados Unidos e Índia.
Despreparo
A maioria das
cidades chinesas está mal equipada tecnicamente para tratar da poluição das
águas. "Apenas 40% das cidades podem testar todos os 106 critérios
listados", disse Song Lanhe, cientista chefe do centro governamental de
monitoramento de qualidade de água, em Pequim. "O resto terá que mandar
amostras para cidades próximas testarem, ou conduzir testes incompletos."
Um dos principais
teatros desta luta é a Bacia do Rio Huai. O maior celeiro da China e lar de 170
milhões de pessoas é cenário de muitas calamidades naturais provocadas pelo
homem na confluência central entre os Rios Amarelo e Yangtze. Em 1950, Mao
Tsé-tung comprometeu-se a "arrear o Huai", algo que imperadores
anteriores falharam em fazer, de acordo com um de seus subordinados.
O presidente Mao,
falou sobre a história da China e enfatizou que a área do vale do Rio Huai era
um lugar onde os camponeses organizavam levantes contra os regimes existentes e
de onde muitos imperadores surgiram. Levando em conta que a região é muito
pobre e frequentemente visitada por desastres naturais, que acarretam problemas
para o governo, os camponeses dessa área são conhecidos por se rebelarem,
especialmente quando estimulados por desastre e fome.
Houve muitos
desastres. Em 1194, décadas antes de Kublai Khan fundar sua dinastia em Pequim,
o Amarelo ultrapassou suas margens e se acomodou no canal do Huai, uma das
1.590 vezes que transbordou e uma das 26 grandes mudanças em seu curso nos
últimos 2,5 mil anos, que bloqueou a vazão do Huai para o mar e depositou tanto
sedimento que, 700 anos depois, o Amarelo foi forçado a voltar ao seu antigo
canal. Entre julho e agosto de 1931, após três anos de seca, um dilúvio
alimentado por chuvas torrenciais e derretimentos de neve tomaram a Bacia do
Huai, afogando milhões e matando outros mais por cólera e tifo. Em 1938, para
impedir o avanço das tropas japonesas, o general Nacionalista Chiang Kai-shek
ordenou o alagamento da região através da explosão dos diques do Amarelo,
afogando milhares de camponeses e deixando muitos outros desabrigados.
No meio século após
1950, o novo regime comunista investiu pesadamente na prevenção de desastres na
Bacia do Huai, construindo 5, 7 mil reservatórios, escavando 2.164 quilômetros
de canais, reforçando 50 mil km de barricadas e preparando 9 milhões de
hectares para irrigação.
Fotos de milhares
de camponeses construindo barragens com pouco mais que as próprias mãos
provocaram espanto e admiração ao redor do mundo. No curso superior do Huai, 13
grandes barragens foram construídas com capacidade de armazenamento de 9,4
bilhões de metros cúbicos em meados dos anos 1970, deixando oficiais confiantes
de que o Huai seria finalmente arreado. Mas um tufão varreu a região em agosto
de 1975 e arruinou duas grandes barragens construídas apressadamente durante o
Grande Salto para Frente, liberando uma parede de água de dezenas de metros de
altura e afogando pelo menos 86 mil pessoas, segundo estimativas oficiais. A
Agência New China News reportou: "Devido a falta de dados hidrográficos e
a pressa para começar a construção, os padrões de alguns projetos importantes
de conservação foram muito baixos e a sua qualidade também, enquanto os locais
dos reservatórios foram impropriamente selecionados".
Milhões de pessoas
fugiram da Bacia do Huai, que se tornou a principal fonte de migração interna
na China. O chefe do Partido Comunista da província de Henan disse que apenas
em 2008 a província exportou 21 milhões de pessoas. "Foi a reserva humana
que abasteceu cidades como Xangai com mão de obra barata", observou
Jonathan Watts, do The Guardian. "Havia poucas razões para ficar. A área
era frequentemente alagada por enchentes. Na era pós-reforma, se tornou
sinônimo de doenças e poluição". "O esgoto no Rio Xiang continua a
exceder os níveis", disse o gerente da estação de monitoramento de água na
província de Hunan. "Mercúrio, arsênico, cádmio e outros metais pesados
excederam seus níveis devido às descargas de fábricas corrente acima."
Respondendo a
agitação pública sobre condições como essas, o governo anunciou em junho de 2012
um Plano de Ação Nacional de Direitos Humanos (2012-15) de 13 mil palavras,
expandindo o plano anterior (2009-10). O novo projeto cobre uma ampla gama de
assuntos, incluindo padrões de vida, segurança social, saúde, educação e
direitos dos presidiários e das minorias.
Documentos como
esse, na China, são preparados com cuidado, a partir de um fluxo prodigioso de
memorandos, relatórios e rascunhos entre burocracias do Partido e dos governos
nacional e provincial e de seus vários institutos de pesquisa. Este tenta
definir os direitos da cidadania, um conceito ainda alheio à civilização
chinesa.
"A China vai
promover a construção de uma rede de monitoramento para a segurança da água
potável", diz o plano, "e fazer essa cobertura se estender para todas
as cidades divididas em distritos em mais de 90% dos condados até 2015. A
população rural com acesso ao suprimento de água centralizado crescerá para
80%". O Banco Mundial culpa os "vários fracassos institucionais e
políticos" pela penetrante poluição das águas na China, incluindo a
cumplicidade com a fraca execução da lei, falhas na operacionalização de planos
de controle e de prevenção, falta de incentivos no tratamento de águas
residuais e conflito com interesses locais, como fábricas cujos donos são
governantes de cidades e vilas.
A Bacia do Huai
que, em 2005, tinha 85% das águas impróprias para consumo humano mesmo após
tratamento, foi a primeira região em que maiores investimentos em controle da
poluição foram feitos. Milhares de fábricas de produtos químicos e de papel e
celulose foram fechadas nos últimos anos, mas resíduos domésticos e de fazendas
ultrapassam em muito a poluição industrial. A densidade populacional e o
surgimento de uma atividade econômica apresentam desafios de inspeção e
execução talvez maiores que aqueles apresentados ao controle de desmatamento na
Amazônia. (OESP)
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